sábado, 25 de junho de 2011

O CRISTO NEGRO DA MARACHA





 Nos últimos anos, seja lá consequência dos tempos que vivemos ou não, quem andar com atenção ao que se passa à nossa volta nas ruas da cidade, facilmente se apercebe que haverá um aumento desmesurado de cidadãos com manifesta anomalia psíquica.
Ora são pessoas a falarem sozinhas, ora são outras a gesticular e a meter-se com quem passa. Ora ainda, e nestas a maioria, as que, sujas e maltrapilhas, dormem em qualquer canto renegando ajuda de quem quer que seja.
No caso presente, e que me serviu de alavanca para escrever este apontamento, foi o facto de um cidadão que dá pelo nome de Anildo Monteiro dormir, agora, no Largo da Maracha, debaixo de uns andaimes que, há vários anos, serviram de tentativa para a sua reabilitação –e aqui, em especulação, poderemos retirar uma ilação: a miséria humana andará de braço dado com a degradação da coisa e do ambiente. Poderemos ainda pensar que, provavelmente, o debilitado fragor financeiro do dono deste edifício teria arrastado, sabe-se lá, tantas e quantas famílias na mesma queda.
Voltando ao Anildo, gostava de salientar a nossa impotência para fazer o que quer que seja. Porque já conversei com ele, sei que já esteve na Casa Abrigo de Coimbra. Quando lhe perguntei se não estaria lá melhor que a dormir onde calha –ele já anda por aqui a dormir em prédios abandonados há mais de um ano-, responde que não, “não gostou do ambiente. Eram assim, assado e cozido”. É óbvio que todos sabemos que estas pessoas não aceitam regras de disciplina. Não sei se há estatísticas, mas tenho a certeza de que os casos de sucesso serão muito poucos.
Antes de prosseguir, gostaria de ressalvar que não estou para aqui armado em Santo António de Coimbra. Nada disso. Lembrei-me apenas de escrever sobre este assunto. Porque, quando nos últimos tempos o vejo deitado, de noite e de dia, no Largo da Maracha, surgem-me dois tipos de indignação em forma de conflito.
Uma, de como cidadão que usa e frui a cidade, aceita as suas regras de convivência, insurjo-me contra aquele quadro que atenta contra a paisagem urbana –e aqui entro novamente em debate interior, ao questionar-me senão estarei a ser egoísta, a ponto de exigir um certo modelo em formatação de cidadania. Tenho algumas dúvidas que o conceito de liberdade se esgote no princípio de que “a minha liberdade acaba onde começa a do outro”. Isto porque este juízo estará certo quando os entes, neste caso os cidadãos, em contrato social, todos, acordam em seguir escrupulosamente o “acordo ratificado”. Mas o que fazer quando uma minoria não segue as linhas da convenção? Ou seja, como tomar contacto com as margens do rio de liberdade do outro se este se escusa a partilhar este leito com regras definidas “a priori”?
O segundo tipo de indignação em conflito que me atravessa é saber até que ponto, em face desta Lei de Saúde Mental que nos rege, estaremos perante uma prescrição equitativa, que, em equilíbrio justo, por um lado, salvaguarda o cidadão que como espectador olha para este quadro de miséria, por outro, dá protecção ao próprio doente mental. Já tentarei explicar melhor mais à frente.
Somos uma democracia ainda jovem, com menos de 40 anos. Tudo o que é legislado é muito espelhado em extensão no nosso Antigo Regime. Muitas vezes até parece que o legislador sofre de recalcamentos e chega ao exagero. Neste caso em apreço da lei de saúde mental, dá para perceber que se tenta, a todo o custo, evitar o internamento compulsivo –de tão fraca memória nos hospícios psiquiátricos de outras décadas-, a tal tentativa de “homogeneização social”, de “super protecção familiar”, de “paternalismo judiciário”, ou de fundamentalismo médico”.
O que quero dizer é que o legislador parece cair numa obsessão garantística e, quando surgem quadros de descontrolo mental, ainda que passageiros, as decisões de intervenção parecem cair em labirintos sem fim, e com cada um que deve tomar a decisão a escusar-se e a remeter para outros a afirmação. Tentando ser um pouco mais claro, sabendo que “o internamento compulsivo, na Lei da Saúde Mental, radica numa matriz garantística, culmina num modelo misto de decisão sujeita a critérios médicos e judiciais; ou seja, exige-se “um consenso entre médicos e juízes, fazendo depender o internamento da conjunção de dois poderes e de dois juízes; por uma lado, uma decisão médica especializada, profunda em conhecimentos técnicos e obrigada por uma deontologia profissional exigente; por outro lado, de uma decisão judicial fundamentada em conhecimentos jurídicos e garantindo a aplicação correcta da Constituição e da lei.”
Neste caso de Anildo Monteiro, e olhando como modelo, o que fazer quando este indivíduo já foi sinalizado pela Segurança Social e até, parece-me, também já esteve a viver numa pensão da Baixa? O que fazer quando, salvo erro, a família já tentou intervir e retirá-lo da rua e não conseguiu?
Claro que se o Anildo fosse violento, e houvesse testemunho de agressividade, a situação seria, “ipsis verbis”, muito mais fácil de resolver. Acontece que este homem não faz mal a ninguém –faz a ele próprio. E é aqui que o meu conflito aumenta. Será que não deveria ser internado compulsivamente para tratamento psiquiátrico? Será que estará certo, por impossibilidade legal de intervir, deixar andar este homem assim, como se fosse um cão ou gato abandonado?


1 comentário:

Jorge Neves disse...

O Anildo é um homem bem educado, todos dias me vem dizer bom dia e boa tarde, sempre que posso compro-lhe um bolo na Pastelaria Palmeira.
Estou sempre a dizer-lhe para ir tomar banho e fazer a barba, ele costuma responder tenho de ir senão na Cozinha Económica não me dão comer.
Sei que ele dormia na entrada do prédio dos antigos Coimbras que agora é uma Loja do Chineses, desconhecia que estava a dormir naquele sitio agora.
Abraço ao amigo Luis por tornar esta história real publica.