quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A FARSA DE DONA VITÁLIA





                                   I
  Está a decorrer na cidade uma importante peça de teatro. Trata-se de uma narrativa trágico-cómica que conta a luta de uma septuagenária, de nome Vitália Ferreira, em pugnar pelos seus direitos. Segundo parece, foi escrita em cascata. À medida que os acontecimentos afloravam assim era passada ao papel.
De certo modo, como quase sempre, é nefasta para a mártir, mas, no seguimento da acção, vamo-nos apercebendo que se trata de uma farsa que nos deveria fazer pensar. Embora seja actual, é um pouco na linha vicentina do século XVI, em que toda a trama gira à volta da personagem principal, Vitália Ferreira, que nunca sai de cena.
Está dividida em quatro actos. Na primeira parte, podemos ver a anciã a reclamar contra o barulho de um bar em frente à sua casa. Tudo começa em 2006, quando este estabelecimento de hotelaria se instala dentro de uma grande associação de estudantes. Podemos avaliar a sua performance na convicção e na força dispendida ao longo da peça. Vemo-la de auscultador de telefone no ouvido, às 5 horas da manhã a ligar para a PSP. Do outro lado da linha, pelo tratamento afectuoso, podemos constatar que a dona Vitália já teria utilizado muitas vezes o serviço de auxílio e é já conhecida ali naquela esquadra de polícia.
Seguidamente, podemos vê-la, também, a escrever várias cartas a tudo o que é poder político no país: Provedor de Justiça, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro e Presidente da República. Nestas exposições, onde pugna pelo seu legítimo direito ao descanso nocturno, faz referência a uma tal “Lei do Ruído”, de Novembro de 2000, e outras alterações legislativas subsequentes.
De dedo em riste, tenta ser ouvida, mas vá lá saber-se porquê, fazendo lembrar o “Sermão de Santo António aos peixes”, escrito por Padre António Vieira, ninguém a ouve. Como ninguém lhe liga, vai várias vezes ao paço, a reuniões do executivo camarário. Por este, pelo seu presidente e restantes vereadores, em enfado, no incómodo mal disfarçado, parece ser olhada com alguma comiseração, no sentido de desvalorizar os seus queixumes. Mas a velha lutadora, para desespero de quem a ouve, não desiste. Escreve para os jornais locais em grandes gemidos de dor, revoltando-se contra o facto de ninguém atender a sua lamúria.
No desenrolar deste primeiro acto pode ver-se um abaixo-assinado a correr entre os moradores da rua de Vitália Ferreira. Como em todas as peças, também nesta, há um corcunda de voz irritante, falsete, que, em riso de galhofa, exclama: “já temos noventa assinaturas para entregar na Câmara Municipal”.
Naturalmente que ao longo do desenrolar da história, aos poucos, quase sem querer, dona Vitália vai-se tornando uma estrela incandescente de resistência no opúsculo da cidade, uma velha e simples mulher do povo a lutar contra o invasor em forma de decibéis. A imprensa local e até nacional faz o resto. Embalada por um falso apoio dos seus vizinhos e de uma urbe egoísta que se está a marimbar para os problemas dos outros, descuida-se na verve, e dá entrevistas aos periódicos. Resultado: uma acção em tribunal por difamação agravada intentada pela gerência do estabelecimento visado nas suas acusações. O que irá acontecer?
Fim do primeiro acto.

                                  II

  Vem a segunda parte. O cenário é o de um tribunal. Dona Vitália, sozinha, sem nenhum subscritor do abaixo-assinado a seu lado, está ser julgada por difamação. Nega as afirmações de que vem acusada pelos autores. Passou de acusadora a acusada. É completamente esquecida a acção principal que motivou toda esta movimentação. Ou seja, a demanda por calúnia, sendo acessória na questão exequenda, obliterou completamente o nuclear da causa. O espectador mais atento facilmente se apercebe que o direito privado prevalece sobre o direito público. Este, não sendo respeitado e passando para segundo plano, para mais, sendo o pilar do Estado de Direito, traz ao de cima, inevitavelmente, a crise e o desvalor da justiça que é a suprema das virtudes. Ao longo do julgamento e sobretudo na leitura de sentença, pela juíza, ficaram patentes as dúvidas na sua culpabilidade. A ré principal desta farsa está confiante na sua absolvição, tendo em conta a sua idade e a sua condição de doente e reformada. Será que vai ser absolvida? Em fundo ouve-se uma gargalhada estridente do corcunda e uma frase prenunciadora: “há-de ser, há-de. Conta com isso!”.
Fim do segundo acto.

                                   III


 Vem a terceira parte. Apesar das dúvidas manifestadas pela magistrada na leitura de sentença, a demandada é condenada ao pagamento de mais de 1500 euros. Vitália chora e dispara em todas as direcções. Lamenta a injustiça de que está a ser alvo. À porta do tribunal promete recorrer para a Relação. Está esperançada de que a justiça será reposta. Mais uma vez se ouve uma gargalhada do corcunda.
Fim do terceiro acto.

                         IV


  Quarta e última parte. Vitália é surpreendida em sua casa pelos funcionários judiciais para executar a dívida resultante da condenação em primeira instância. Ou seja, perdeu o recurso interposto. Por entre choros sofridos e lamentos, alega não ter conhecimento do acórdão do tribunal superior. Para evitar ficar sem os seus poucos haveres, passa três cheques, sabendo à partida não ter fundos para os cobrir. Dos seus vizinhos, da sua rua, nem um abraço de solidariedade recebe.
Passados dias, num jornal diário local, pode ver-se uma foto com os autores da demanda, acompanhados do presidente da associação estudantil, a entregarem cerca de 1500 euros ao presidente de uma instituição para a infância. Mais uma gargalhada estridente do corcunda e uma exclamação: “ah…ah…praticar solidariedade à custa da miséria. Esta é boa!”.
A mulher, sozinha no palco da indiferença, chora desalmadamente. Como conseguir pagar aquela importância com uma reforma de 240 euros? Em fundo, mais uma vez, o corcunda soletra: “estavas à espera de quê? De milagres?”. Vê-se então a mártir ajoelhar-se perante uma imagem de Nossa Senhora dos Milagres.
Entretanto, já exangue de forças, a pedir auxílio, como se fosse um náufrago prestes a afogar-se, Vitália publica outro texto num diário da cidade. Outra ameaça de demanda por difamação do autor e agora acompanhado da associação estudantil. Mais uma vez, em gargalhada satírica que ecoa em todo o espaço, vem o corcunda proferir: “porque é que não a levam ao pelourinho e lhe deitam o fogo? Ao menos acabavam de vez com esta farsa!”.
E termina assim esta peça teatral que nos deveria fazer pensar a todos.

1 comentário:

Anónimo disse...

A peça está escrita com o rigor dos factos , pondo a nu as fragilidades em concreto da nossa justiça e em abstracto do nosso país, que nesta matéria do ruido urbano é mais que terceiro mundista.
A senhora está cheia de razão e ninguém deve ser obrigado a ver cerceado ou limitado o seu direito fundamental ao sossego e repouso, principalmente a horas em que a lei considera tal absolutamente proibido, por alguém que se acha no direito de poluir e a poluição sonora é crime, art. 279, al. c) do Cód. Penal, e tão mais grave que qualquer outra.
Sabe porque é que a senhora alegadamente difamou?Porque no exercicio do direito de legitima defesa, ou melhor de auto defesa, vendo - se abandonada pelas autoridades com competência na matéria, recorreu ao unico meio disponivel aos oprimidos; a força da palavra.
Sabe amigo, também eu, e provavelmente todos os cidadãos de principios e valores de respeito pelo próximo, sinto o mesmo problema; vivo junto a uma associação desportiva cujo mérito não questiono, antes pelo contrário e já tive o cuidado de o comunicar aos próprios, porém aos sábados e domingos, quando as pessoas querem descansar, muitas vezes antes das oito horas da manhã, colocam a música na instalação sonora num volume tão alto que ninguém, a quilómetros de distância, consegue dormir ou estudar.
Já questionei a Câmara para saber se a referida associação tem legitimidade para tal, por ter requerido a emissão de licença, e a resposta foi de que não houve qualquer pedido de licença, mas quanto a fiscalização nada, absolutamente nada.Todos os fins de semana o problema é igual.
Inércia total dos poderes públicos ( já parece a sua cruzada contra o estado do prédio abandonado próximo do seu estabelecimento !).Neste país o que interessa é não mexer na porcaria porque em tempo de eleições, os eleitos vão necessitar do voto de todas as moscas, para fazerem mais m....( desculpe - me o lamento mas por educação não escrevo a palavra adequada ).
Relativamente ás motas; já alguem se questionou sobre os maleficios para a saúde fisica e psiquica do ruido emitido pelos escapes, ainda por cima adulterados, das motas?
Sabe porque?Porque as autoridades policiais preocupam - se mais em autuar o Srº Luis ou outro comerciante que na baixa descarrega em poucos minutos mercadoria para o seu estabelecimento, do que mandar parar para medir o volume de ruido das milhares de motas que circulam na cidade.
Sabe amigo, assistimos lamentavelmente a uma inversão total de valores;sou mais novo que o senhor mas na minha geração, mais ainda na anterior, o respeito pelo próximo, a educação, a solidariedade,etc. eram valores e principios orientadores de vida essenciais.Agora é a selvajaria total.
Em suma porque já vou, abusadoramente longo, e era isso que deveria ser frisado pelo seu defensor no julgamento; a senhora só alegadamente difamou, porque quem tem o dever de a defender ( Câmara que emite a licença ao poluidor e não controla os termos do exercicio dos direitos que a mesma confere, a policia que é chamada e não resolve, por falta de meios, por inércia habitual, ou por conluio com os infractores, etc. )não o faz, ou seja, não a defende e não o fará no futuro, pelas razões que acima enunciei; os poderers politicos existem para bajular e angariar simpatia dos particulares e não para, defendendo os particulares, manterem um verdadeiro estado de direito e uma sã cidadania.
Lamentavelmente começo aos poucos a criar em mim o sentimento de repudio de ser português.Conheço nesta particular matéria do ruido muitos paises europeus e não é nada esta vergonha.