quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"ESTE É O MUNDO REAL DA BAIXA"




  Ana Maria Cristóvão é assistente social na congregação “Criaditas dos Pobres”, mais conhecida por “Cozinha Económica". São 14H30. Como se estivesse à espera de alguém, os seus olhos, como faróis perscrutadores, percorrem a Travessa do Paço do Conde e a rua com o mesmo nome, de lés-a-lés. De vez em quando dá um passo à frente, para logo a seguir dar outro atrás. Está de atalaia ao número 1.
É naquela residência que vive o Jorge Álvaro, utente dos serviços de que Ana Maria faz parte e se entrega de alma e coração. Mesmo sem lhe perguntar o que fazia ali, intuitivamente, pensei saber a razão. Ontem, três vizinhas do Jorge vieram falar comigo: “olhe lá, como o senhor costuma escrever sobre a Baixa, podia descrever a miséria em que está o Jorge Álvaro. Ele está uma lástima, com feridas no corpo e não se deixa tratar. Tem uma perna a gangrenar –eu sei porque levei-o às urgências há cerca de um ano e vi aquela chaga. É impressionante. A casa dele é uma autêntica pocilga, cheia de lixo e pulgas. Aquilo é um cheirete que nem o senhor imagina. Apesar da assistente social da Cozinha Económica fazer o que pode…não pode grande coisa, porque ele não deixa. Temos de fazer alguma coisa…coitado do homem! Não o podemos deixar morrer assim! Está completamente senil. Mas o que se há-de fazer? Se o senhor escrevesse para o jornal…”, declara uma das mulheres.
O Jorge Álvaro tem cerca de 70 anos. Arrasta-se pelas ruas meio curvado para a frente em passo apressado como se fugisse da própria sombra. Enfiado numa roupa mal amanhada, um pouco suja, está um corpo frágil. A começar de cima, está uma cabeça praticamente lisa, com feridas no outrora couro cabeludo, quase uma bola de bilhar maltratada. Sobre as costas curvadas, repletas de caspa, umas pontas de cabelo amarelado, como canas no canavial a balouçar ao vento, mostram que outrora ali houve vida capilar. Num rosto comprido, de olhos pequeninos, está um nariz adunco. Os seus braços longos estão acompanhados de umas mãos brancas, delicadas, com dedos longos de pianista. Quando alguém lhe chega próximo –se aguentar o fedor emanado do seu corpo- e tenta entabular conversa, é olhado com profunda desconfiança. No meio de uns grunhidos, o Jorge interroga: “que quer? Que quer? Conhece-me de algum lado?”. Tem de se desistir porque não é possível dialogar com ele.
Ora então, boa tarde Ana Maria, como vai? Está à espera do Jorge? Interrogo. “Pois estou! Não foi almoçar à “Cozinha”. Estou preocupada com ele. Está cada vez a decair mais. Mas o que é que podemos fazer? Vamos violentá-lo, vamos obrigá-lo à força?
Em meados do ano passado, enviei um relatório para o Delegado de Saúde, Autoridade Pública de Saúde, a expor a situação. O processo foi remetido para uma assistente social do Centro de Saúde que trabalha com esta zona.
Mas não se pode fazer nada porque ele é explícito a dizer que não o podem obrigar a fazer seja o que for. Diz mesmo que só toma banho ou vai ao médico se quiser. Ninguém o pode obrigar. Costuma mesmo verbalizar: “deixem-me viver a minha vida como eu quiser”.
Estou muito preocupada com a sua saúde, que se nota estar cada vez pior. E sobretudo porque tem uma grande ferida numa perna que não cicatriza.
Para resolver esta situação era necessário um relatório que atestasse que apesar da sua aparente plenitude de faculdades mentais, este homem, psiquicamente, não está bem. Mas ele sempre foi assim. Eu conheço o Jorge há mais de vinte anos. Era filho daquela senhora que tinha uma mercearia na Rua das Padeiras, por volta dos anos de 1970. Lembra-se? Ele viveu sempre com a mãe. Quando ela morreu, há uns anos, foi um problema para retirar o corpo da sua casa. Teve de ser com a polícia. Por morte dela, o Jorge tinha direito a uma pensão de sobrevivência, pois, acredite, nunca a recebeu porque nunca consegui que se deslocasse ali à Loja do Cidadão comigo.
Este caso exige uma intervenção urgente, mas como é que se pode fazer alguma coisa se ele não quer? Ele está a colocar em risco a sua saúde, mas o problema é que a sua decisão, aparentemente, assenta numa manifestação lúcida.
Vale alguma coisa a nós dizer que, mentalmente, ele está desequilibrado? Claro que de nada vale. Verdadeiramente, ele não constitui nenhum perigo para a comunidade. Está a fazer mal mas é a ele próprio…mas não se apercebe. Estamos perante uma limitação de saúde mental. O problema é a falta de motivação. E é só ele senhor Luís? Todos os dias, infelizmente, vejo caras novas por aqui. Isto é o nosso mundo real da Baixa".

1 comentário:

Anónimo disse...

Assunto que me interessa e de que maneira.
Pretendo informar que a Junta de Freguesia de São Bartolomeu na pessoa do seu Presidente, tem acompanhado de perto este grave problema social.
Já falei várias vezes com o Sr. Jorge que faz o favor de me ouvir simpáticamente. Temos tentado a todo o custo que os préstimos do Serviço domiciliário da Cozinha Económica ( Excelente Serviço)se desloque à residência do Sr. Jorge. Essa disponibilidade é total por parte desse serviço. O problema é que o utente não permite a entrada de ninguém na sua residência.
Agora como resolver? ão sei.
O Sr. Jorge tem participado nos eventos da Junta de Freguesia, inclusivé o convidamos.
Parece-me que existe um grave problema mental que se agravou com a morte da mãe.
Atenção que ele para além do problema de higiene é uma pessoa lúcida.
Mas permita-me dizer que já foi feita uma desinfestação e limpeza á residêncis.
É verdade que a Drª Ana Maria muito tem feito para inverter esta situação delicada e a Junta de Freguesia também está muito atenta e já se poderia ter resolvido, se o próprio fosse uma pessoa receptiva ao problema e pelo que escreve vê bem que não.
Infelizmente na nossa Baixa existem mais Jorges que se sabem e os outros que se refugiam no anonimato?
Enfim um grave problema da nossa sociedade.
A Junta de Freguesia de São Bartolomeu, está disponivel para ajudar nas situações como esta e outras que nos possam chegar.Pelo menos temos boa vontade em ajudar.
Aliás foi bandeira de candidatura a Solidariedade e cá estaremos.
Um abraço sempre amigo
Carlos Clemente