quinta-feira, 19 de novembro de 2009

"ESTE LIVRO QUE VOS DEIXO" -UM COMPLEMENTO PARA A HISTÓRIA





Há cerca de dois meses, Paulino Mota Tavares, um historiador emérito de Coimbra, que se interessa por tudo o que, através da história, acrescente valor à cidade, em conversa comigo, interrogou-me: “olhe lá você conhece alguém que tivesse convivido com António Aleixo, enquanto ele esteve internado aqui para curar a tuberculose? É que para a próxima semana, vem cá a Coimbra um cineasta que vai fazer um filme sobre o poeta algarvio”. Respondi-lhe que não conhecia ninguém que tivesse contactado o construtor de rimas.
Hoje, em conversa com o meu amigo Fausto Rosa, um vetusto ancião de 87 anos, interroguei-o acerca de António Aleixo. O meu amigo conheceu-o muito bem, quando ele passou por Coimbra. Vamos então “gravar” o seu depoimento.
“Por volta de 1950 –não me lembro exactamente em que ano- eu frequentava a “Brasileira”, na Rua Ferreira Borges, tinha à volta de trinta anos (nasci em 1922). Nessa altura, os frequentadores do estabelecimento de café eram conotados do “contra”, podiam até nem o ser intrinsecamente, mas bastava não se concordar com o sistema, com Salazar, para imediatamente passar a ser do “contra” –se não se era a favor, era do contra, não havia meios-termos.
Quem frequentava este saudoso estabelecimento, que me recordo mais, era o Vitorino Nemésio, o escritor açoriano, e o Paulo Quintela, o professor catedrático. Para além dele, havia também o Pimpão, que era também professor, o Louzã Henriques, os irmãos Vilaça e também o médico Adolfo Correia da Rocha, mais conhecido por Miguel Torga. Este mais tarde passou a frequentar o Café Arcádia, quase ao lado, quando o José Maria Cerveira, em sociedade tomou conta do estabelecimento e se tornaram muito amigos.
Então, nessa altura, começámos ver entrar e a frequentar o café, várias vezes por semana, um homem magricela. Não sei porque razão, a verdade é que começou a sentar-se à nossa mesa, onde algumas vezes estavam o Nemésio, o Quintela, eu e o Pimpão. Era o António Aleixo. Penso que os dois primeiros se aperceberam que o cauteleiro do Algarve fazia um verso da mesma forma que eu conto até cinco. E, certamente deveria ter sido por isso que eles o começaram a convidar para junto de nós.
O Aleixo estava internado no Hospital dos Covões, baptizado então como Hospital Geral Colónia Portuguesa do Brasil, que foi construído graças ao esforço de muitos portugueses radicados naquela colónia portuguesa. Foi erigido exclusivamente para ser sanatório dos tuberculosos.
Ora, como o Aleixo estava com tuberculose e a ser tratado lá nos Covões, vinha muito à Baixa, umas vezes sozinho, outras acompanhado. Ninguém queria saber se ele tinha uma doença contagiosa ou não. Ninguém ligava a isso –não é como hoje, que anda tudo com medo de uma gripezita e até lhe chamam pandemia.
Então, dizia eu, estou convencido que o Nemésio e o Quintela viram imediatamente a força inata que estava naquele homem analfabeto, e que mais tarde, através da recolha dos seus versos, deu origem aos livros do grande poeta popular. Só podia ter sido por isso, porque o homem era muito rude. Lembro-me do António estar na nossa mesa e, por dá cá aquela palha, sair um verso com uma rima espectacular. O homem era mesmo uma força da natureza –faz-me lembrar um outro que também conheci, que sendo também analfabeto, fazia rimas de versos com uma facilidade assombrosa. Quase parecia que a natureza ou Deus, para os compensar das agruras da vida, enchera-os de talento. Você já viu se estes homens tivessem tido a possibilidade de terem estudado?
O António Aleixo fazia versos com tal facilidade que nós já nem ligávamos. Era como se fosse uma fonte a jorrar água.
Passados meses, já presumivelmente curado, o Aleixo regressou ao Algarve, mas, a partir do momento em que foi “descoberto” em Coimbra, não voltou a ser o mesmo cauteleiro, simples, que saiu de Loulé. Tornou-se uma estrela.
Um bom trabalho: o do Vitorino Nemésio e o do Paulo Quintela. Onde quer que eles estejam, que descansem em paz. Fizeram muito pela cultura popular. Sem eles ninguém conheceria a obra de António Aleixo
Que saudades desse tempo, amigo Luis…quem me dera…”

2 comentários:

Robertson Frizero disse...

Muito obrigado pelo depoimento. Sou brasileiro e estudo a obra de Aleixo - sou também um grande fã do poeta-cauteleiro. Um grande abraço!

LUIS FERNANDES disse...

Eu é que lhe agradeço a visita.
Volte sempre e obrigado.