quarta-feira, 26 de março de 2025

EM MAIO DE 2011 ESCREVI “O HOMEM DA BICICLETA ÀS CORES”

 




EM MAIO DE 2011 ESCREVI “O HOMEM DA BICICLETA ÀS CORES”


(QUALQUER SEMELHANÇA COM A NARRATIVA QUE SE PASSA ACTUALMENTE) NA MEALHADA É PURA COINCIDÊNCIA)



Todos sabemos, as cidades, na sua diversidade, são uma galeria de arte vária. A maioria de nós não se apercebe das diferenças que subsistem entre os seus elementos. Talvez porque, por um lado, estamos inteiramente afundados nas pessoais preocupações financeiras, e, por outro, pela acultura que destrói a sensibilidade individual, sem querer, acabamos por olhar para tudo e todos como fazendo parte da mesma massificação.

Às vezes, temos um quadro vivo, em expressão surrealista, mesmo à nossa frente e é apenas mais um entre os demais. Há várias razões, mas destaco apenas uma, que nas últimas décadas tem caído no esquecimento: a educação para a arte. Ou seja, a partir da escola básica dever-se-ia incutir nos jovens o despertar mágico da sensibilidade para a faculdade de ver para além do comum. Porque, afinal, se nos pedirem para descrever a arte, aposto, não é fácil. No meu conceito, direi que a arte é toda a manifestação viva ou inactiva que toca os nossos sentidos. O que quer dizer que, mesmo na morte, e desde que seja tratada como tal, esta, pode ser uma exteriorização de cultura e arte.

E escrevi este longo prólogo para apresentar o “homem da bicicleta às cores”. Já há umas semanas passei por ele na Ponte de Santa Clara e achei que estava perante um raro quadro urbano ou suburbano de cultura viva. Ao olhar para esta ambiguidade de homem/bicicleta, senti o mesmo que olhar para uma pintura surrealista de Salvador Dali.

Chama-se Celso Loureiro, (Já falecido) e morava nos arredores de Coimbra. Foi com alguma desconfiança que me deixou fotografá-lo. Enquanto lhe dizia que era para um blogue e que, na sua postura de homem/máquina, siameses colados entre o humano e a técnica, o considerava um quadro digno de nota na paisagem urbana corriqueira e quase sempre igual, um pouco com palavras arrancadas a saca-rolhas, lá me foi dizendo que optou por pintar a sua “companheira” de cores vivas porque gostava muito. “Fui eu mesmo que a pintei!”, foi-me dizendo, como se estivesse orgulhoso da sua obra de arte, mas ao mesmo tempo sem me dar muita confiança. Afinal é assim mesmo. Artista não liga a “paparazzi”. Deu para perceber uma qualquer disfunção na sua personalidade. Mas também quantos de nós, psiquicamente, seremos completamente funcionais? Mesmo preenchendo o requisito de normalidade, este valor andará sempre a balouçar numa grande imprecisão de relatividade, quer pelo meio, quer pela vontade, na resistência ao estandardizado, do próprio indivíduo.




quarta-feira, 19 de março de 2025

HOJE É O DIA DO PAI

 




Pelo menos em cerca de uma dúzia de países, incluindo os Estados Unidos, foi convencionado comemorar o Dia do Pai a 19 de Março.

Pai (do latim patre, também chamado de genitor, progenitor ou gerador) é a figura masculina de ascendente de parentesco que na instituição Família, do ponto de vista histórico, mais foi perdendo importância.

Hoje, ser pai, sobretudo com o manto branco da terceira-idade, é ser um viajante solitário, abandonado e carregado de malas vazias, cheias de nada, com narrativas que já ninguém quer ouvir, e muito menos os seus filhos.

Em metáfora, está sentado num banco de uma estação de caminhos-de-ferro e vê passar os comboios. Cada trem que chega, simbolizando o passado, com o ruído do rodado a malhar no ferro a avivar memórias, carregado de velhos do seu tempo, traz para si a recordação de uma história vivida lá longe, nos anéis do tempo, e já tantas vezes revista e analisada na sua cabeça em catarse, como se cada retalho da vida, lembrado em trauma, estivesse sujeito a uma purga emocional, a um exame minucioso e mental onde o arrependimento sublinha a sua existência.

Cada composição que parte em direção ao futuro, com as margens a transbordar de gente nova e que sem o saberem tem por destino a velhice, leva consigo o implacável culto da juventude.

Ser velho neste tempo pleno de modas e convenções é cada vez menos glorificante.


terça-feira, 18 de março de 2025

A ÚLTIMA VISITA






Contrariamente aos fins-de-semana antecedentes deste Março chuvoso e cinzento, que têm sido prolixo em tempestades, como se apresentasse com um brilho novo a auspiciar uma primavera cheia de força como a dar alento à madressilva trepadeira, o dia apresentava-se soalheiro e convidava a sair do sofá caseiro. Foi nos primeiros dias de janeiro que, por negligência grosseira, dei uma aparatosa queda, resultando várias fracturas, e durante os dois meses seguintes me impediu presencialmente de ir dar um abraço e dois dedos de conversa à minha tia Dorinda, que, por sua vontade e generosidade dos filhos, meus primos, para ter mais cuidados médicos e amigos da mesma idade, estava instalada numa “residencial sénior” ali para os lados de Oliveira do Bairro. Em diálogos anteriores, num tempo de quase total desligamento dos mais novos pelos mais velhos, manifestava regozijo e felicidade por poder usufruir de tanto carinho vindo das suas “joias”. Nos últimos tempos, aquando de outros encontros, amiúde, várias vezes repetia ser uma mulher com muita sorte. “Sou uma pessoa muito feliz. Deus foi sempre muito meu amigo. Todos dias rezo, de manhã e à noite, por eles e por vocês - e mostrava dois terços, um vindo de Fátima envolto no pescoço e outro nas mãos apertando as contas do Rosário. Vocês fazem parte de mim. Gosto muito de vocês, meus amores!”.

Foi no último domingo que passámos na instituição para lhe dar um abraço caloroso e dois beijinhos repenicados a manifestar afeição e respeito por alguém que fez parte da nossa existência. Olhos serenos, a mostrar tranquilidade, e maçãs do rosto cheio, quando nos via abria os braços como se imitasse a estátua do Cristo Rei.

Embora faladora e pronta a contar retalhos de uma vida plena junto do “seu Manel”, companheiro já falecido, encontrámo-la muito debilitada. Durante cerca de uma hora, falou de, apesar de ter feito há pouco 90 anos, quanto era bom agradecer por estar entre nós. Mesmo tendo noção que era altura de virmos embora para não a cansarmos, como se fôssemos uma ponte, deixem-se estar. E passando o recado junto ao ouvido da minha minha mulher, redizia: “Gosto muito de si, Ana. Muito, muito, muito”. Parecia relutante em separar-se de nós.

Despedimo-nos com uma estranha sensação de angústia, como se fosse a última vez que nos encontrávamos com vida.

No dia seguinte, segunda-feira, 16 de Março, a minha tia Dorinda, imaginando que num sono profundo de paz e amor, partiu para a eternidade.

Várzeas ficou mais pobre e vazia.

Até sempre tia Dorinda. Até um dia.