quarta-feira, 30 de abril de 2014

O OUTRO LADO DO 25

(Imagem da Web)



Comemorámos há dias 40 anos sobre o 25 de Abri de 1974. Penso que talvez valesse a pena pensar nas conquistas que conseguimos ao longo destas quatro décadas. Confesso que, a redigir as primeiras frases deste texto, não sei muito bem por onde começar. Tenho uma angústia que me persegue, uma ideia, mas não sei se conseguirei expor o que me vai no pensamento. À medida que vou escrevendo vou tentar mostrar o que me move. Como ressalva, declaro que não pretendo branquear o Antigo Regime. Nada disso! Quero apenas especular sobre singularidades do antigamente e algumas que assistimos na actualidade. Quando se deu o golpe eu tinha 17 anos de idade e trabalhava desde os 10. Tenho saudades dessa época? Não. Ou, no limite, só se for pela minha jovialidade que, com muita pena, não voltará mais!
Visto pelos meus olhos e pelo que vivi, comecemos por mostrar o que foi o Estado Novo nos últimos anos de 1970. No que toca à parte económica a população, no geral, vivia melhor na cidade do que na aldeia. Entre as duas convivências existia uma assimetria descomunal. Como amostra de bem-estar aqui em Coimbra, exceptuando as zonas velhas da Alta e da Baixa, praticamente todas as construções, relativamente recentes, tinham casa-de-banho. Eram raras as edificações que tivessem este essencial símbolo de boa vivência nas povoações do interior e mesmo junto ao litoral –de tal modo que a primeira vez que tomei contacto com uma sanita e um bidé foi aqui e depois de abandonar a minha aldeia.
No que toca a electrodomésticos fundamentais como frigorífico, rádio e televisão eram mais comuns no burgo e escassos nos lugarejos –no meu lugar de menino havia apenas uma televisão na mercearia.
Os urbanos, porque tinham mais possibilidades de aceder aos estudos superiores, presumivelmente, tinham uma consciência política e seriam muito mais cultos do que os rurais. Lembro-me que, no lugarejo onde passei a infância, de um total de uma centena de habitantes, somente meia dúzia de residentes teriam tido acesso à Universidade –destes só três teriam concluído a licenciatura –se bem que talvez por parte dos pais não houvesse uma grande sensibilidade para a formação intelectual como ferramenta futura para os filhos. Ou seja, era uma cultura negativa, um costume de apostar mais no trabalho físico e continuado, facilitista, no sentido de que implicava custos enormes para uma bolsa de riqueza residual.
Não havia reformas para os trabalhadores rurais e domésticas. Nos últimos dias, nesta comemoração, muito se falou sobre isto mas, recordo, o aumento do ordenado mínimo para 3.300$00, promulgado por Vasco Gonçalves, desencadeou o disparo do consumo interno –e com isto não estou  a fazer análise e a dizer que foi bom ou mau do ponto de vista económico. Refiro apenas o facto. O que sei é que, nessa época e aqui na cidade, de repente parecia que todos tinham enriquecido subitamente. As lojas comerciais, literalmente, passaram a ser invadidas, assaltadas, pelos consumidores. Tudo se vendia sem importar o quê. As pessoas pareciam esfomeadas pelo comprar –não escrevo de cor, eu estava a trabalhar no comércio e vi com os meus olhos. Na parte que me toca de consumidor, lembro-me que, em 1977 e a prestações, comprei a minha primeira televisão e frigorífico na desaparecida loja Bruma, na Rua Adelino Veiga, e estive semanas à espera. Não havia para entrega.
Fomos subindo, subindo no conforto até que chegámos aos nossos dias com vários frigoríficos e televisões em casa e vários automóveis encostados e sem saber o que lhes havemos de fazer por, devido à quebra de rendimentos e aumento de custos energéticos, não termos possibilidades para os manter activos.
Também no acesso à Universidade aconteceu a mesma coisa. Democratizou-se o ensino superior. Sem dúvida e foi bom, mas exagerou-se e hoje um curso universitário, salvo excepções, vale pouco e de tal modo que, muitas vezes, para se conseguir um emprego médio tem de se ocultar a formação adquirida. Talvez o erro foi ter-se desvalorizado completamente o ensino técnico. E, nos nossos dias, o trabalho, tal como o conhecemos até aqui, é cada vez mais solúvel e precário. A busca incessante pelo retirar esforço, no paradoxal, está a matar o homem e a destruir completamente a sua ocupação física no labor. A informática e a digitalização se, por um lado, elevam a comodidade ao máximo, por outro, estão a aniquilar os seus rendimentos. Hoje um desempregado sem meios de subsistência é um desenraizado, um ser errante perdido, um pária, que, no fio da navalha, busca simplesmente a salvação e agarra-se a qualquer coisa. O que, em face da sua sobrevivência premente, torna justificável a acção directa, isto é, o roubo –não sei se será o caso, mas o furto de dezenas largas de tampas de saneamento em ferro em toda a área urbana pode indiciar isto mesmo.
Então, na mesma linha de resistência, assistimos a uma horda de pessoas na rua, sobretudo jovens, a tentarem vender qualquer coisa, desde perfumes, bugigangas, angariação de novos contratos para telecomunicações. É um dó o que se está a passar. E o grave é o respeito que nos devem merecer e darmos por nós, sem paciência nenhuma para os escutar, quase a empurra-los das nossas vistas. É triste! Muito triste!
Embora não saiba se fui claro, o que parece é que, num retorno impossível de fugir, numa velocidade estonteante, estamos a recuar para um tempo que os mais velhos se recordam bem. Para além disso, embora constatemos que a abastança não é sinónimo de felicidade, reparamos que nos sentimos empurrados para uma espiral impossível de suster.
Depois desta volta em busca de algum sentido nestas quatro décadas, o que resta de uma grande utopia? Pensemos… pensemos! O que ficou foi a liberdade. Mas, se olharmos à volta, dá para ver que também se está a exagerar. Perdeu-se o Norte. A liberdade, sem responsabilidade colectiva, descambou em libertinagem, em cada um fazer o que lhe dá na real gana. Tal como aconteceu com os bens tão necessários no nosso dia-a-dia, também a demasiada autonomia individual para algumas permissões dá para verificar que cada vez mais está a entrar pelo cano da sanita. O que nos permite antever que, de facto, só se valoriza o que implica sacrifício na sua obtenção. O que é fácil, porque não deixa história, perde valor rapidamente. Talvez seja por isto mesmo que os tempos que vivemos sejam apenas uma passagem efémera. Saber para onde é que reside a questão!

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